O elo oculto entre açúcar e álcool: bloquear uma enzima pode proteger o fígado e reduzir o vício

O elo oculto entre açúcar e álcool: bloquear uma enzima pode proteger o fígado e reduzir o vício

Um novo estudo trouxe à tona um elo bioquímico inesperado entre açúcar e álcool: o consumo de bebida alcoólica pode ativar uma via metabólica que gera frutose dentro do próprio organismo, o mesmo tipo de açúcar presente em refrigerantes e doces. Essa frutose endógena, por sua vez, parece reforçar o desejo por álcool e, ao mesmo tempo, contribuir para lesões hepáticas.

No centro desse processo está a enzima KHK (ketohexoquinase), responsável por metabolizar frutose. No trabalho publicado na revista Nature Metabolism, pesquisadores mostraram que bloquear a KHK em modelos experimentais reduz o consumo de álcool e protege o fígado contra inflamação, acúmulo de gordura e fibrose – sugerindo um alvo terapêutico comum para doenças hepáticas relacionadas tanto ao álcool quanto ao açúcar.

Como álcool e frutose se conectam no fígado?

Quando pensamos em frutose, normalmente lembramos de refrigerantes, doces e ultraprocessados. O estudo mostra, porém, que o álcool também pode gerar frutose dentro do corpo. Em resposta ao etanol, uma série de reações metabólicas leva à produção de frutose hepática, que é então metabolizada pela KHK.

Esse metabolismo da frutose pela KHK favorece o acúmulo de gordura no fígado, aumenta o estresse oxidativo, altera sinais de saciedade e recompensa e, em última análise, contribui para um círculo vicioso: mais dano hepático e mais estímulo ao comportamento compulsivo de busca por álcool. É como se o álcool “sequestrasse” o metabolismo do açúcar para manter o ciclo de consumo e lesão hepática.

Bloquear a KHK: menos álcool, menos lesão hepática

Para testar o papel da KHK, os pesquisadores utilizaram camundongos expostos a álcool e estratégias para inibir essa enzima, tanto geneticamente quanto com compostos farmacológicos. O resultado foi consistente: animais com a via da KHK bloqueada passaram a beber menos, apresentaram menos inflamação, menos gordura e menos cicatrizes no fígado em comparação aos controles.

Em outras palavras, ao interromper a “fábrica interna de frutose” acionada pelo álcool, foi possível proteger simultaneamente o comportamento de consumo (redução do padrão compulsivo) e o órgão-alvo (fígado). Esse achado aponta a KHK como um alvo promissor para novas abordagens contra o alcoolismo e a doença hepática alcoólica, especialmente em pacientes que não respondem bem às terapias disponíveis hoje.

Muito além do álcool: obesidade, dieta e fígado gorduroso

Um ponto interessante é que a mesma via metabólica mediada por frutose está envolvida em formas de doença hepática gordurosa associada à obesidade e à dieta. A sobrecarga de frutose – seja vinda de bebidas açucaradas ou gerada internamente – pode convergir em mecanismos comuns de inflamação, esteatose e fibrose hepática.

Assim, embora os dados atuais venham principalmente de modelos experimentais, a hipótese é que bloquear a KHK possa, no futuro, beneficiar não apenas pessoas com doença hepática alcoólica, mas também pacientes com lesão hepática metabólica ligada à obesidade, síndrome metabólica e dietas ricas em açúcar. Um único alvo, portanto, poderia impactar milhões de indivíduos afetados por distúrbios do fígado relacionados a álcool e açúcar.

É importante lembrar, porém, que se trata de pesquisa em fase inicial. Ainda não estamos falando de um medicamento pronto para uso clínico, e qualquer estratégia terapêutica deverá passar por ensaios clínicos rigorosos em humanos, com avaliação de eficácia, segurança e efeitos a longo prazo.

Assista em vídeo: o elo oculto entre açúcar, álcool e fígado

Referência científica

Artigo original: Nature Metabolism.
DOI: 10.1038/s42255-025-01402-x.

Genômica, metabolismo e medicina de precisão

Alvos como a KHK mostram como caminhos metabólicos, genética e ambiente se integram na origem das doenças hepáticas. Para interpretar esses achados, ler laudos genômicos com segurança e trazê-los para o consultório, uma formação sólida em genômica clínica faz diferença na rotina assistencial.

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Conteúdo elaborado por:

Dr. Caio Robledo Quaio, MD, MBA, PhD
Médico Geneticista – CRM-SP 129.169 / RQE nº 39130

Dr. Caio
Robledo Quaio

CRM-SP: 129.169
RQE: 39130

Médico (90a turma) pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), com residência em Genética Médica pelo Hospital das Clínicas da USP e Doutorado em Ciências pela USP. Possui Título de Especialista pela Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica, Acreditação Internacional pela Educational Commission for Foreign Medical Graduates, dos EUA, Observrship em Doenças Metabólicas pelo Boston Children’s Hospital e Harvard Medical School e foi Visiting Academic da University of Otago, da Nova Zelândia. É autor e coautor de dezenas de estudos científicos em genética, genômica, doenças raras, câncer hereditário, entre outros temas da genética. Atualmente, é Médico Geneticista do Laboratório Clínico do HIAE e do Projeto Genomas Raros, ambos vinculados ao Hospital Israelita Albert Einstein, e Pesquisador Pós-Doutorando da Faculdade de Medicina da USP.

Dra. Helena
Strelow Thurow

CRBIO-01: 100852

Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Católica de Pelotas, mestrado em Biologia Celular e Molecular pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Doutorado em Biotecnologia pela Universidade Federal de Pelotas (2011). Realizou Pós Doutorado em Epidemiologia e Pós-Doutorado PNPD em Biotecnologia, ambos na Universidade Federal de Pelotas. Posteriormente, realizou Pós-Doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo. Foi Analista de Laboratório no setor de NGS do Hospital Israelita Albert Einstein e atualmente é Analista de Pesquisa na Beneficência Portuguesa de São Paulo. Tem ampla experiência na área de Biologia Molecular e Biotecnologia.